domingo, 1 de fevereiro de 2009

1ª Crónica parte I - Intro

Estávamos no parque numa tarde de Outono quando tudo começou. O céu estava mergulhado num cinzento poluído pela urbe que crescia como um apêndice de cidade. Dava-mos uns toques numa bola suja de branco amarelado e quadrados negros rebentados, com a câmara-de-ar à mostra. Ao longe uma nova geração de banditismo se aproximava sem que déssemos conta. Os prazeres que estávamos a ter eram inatingíveis a um nível mais adulto ou maduro. Cansávamo-nos uns aos outros com risos enquanto pontapeava-mos a bola escrita em fanicos. Saltaram o pequeno muro munido de uma decadência enfeitada com escritos de “Sofia ama Jorge” ou “vota CDU” e com retalhos de cimento à espreita e à espera que as pequenas pedras de argamassa que jaziam no chão, se levantassem e os preenchessem. Empurraram um conhecido meu para o chão e tiraram-lhe a bola que tinha ganho nos cromos de uma caderneta qualquer. Daquelas em que o cheiro a plástico e a folhas novas abunda, assim como a cola dos autocolantes apetrechados de desenhos ou fotografias. Eles eram uns cinco e nós, uns três. Um já estava no chão, a tremer, com as lágrimas a entupirem-lhe o nariz enquanto passavam pelo rosto e o lavavam. O outro de nós tentou em vão tirar-lhes o objecto esférico enquanto eu assistia a tudo aquilo impávido. Troçaram da sua inocência e fizeram uma arrabia com ele. A bola ia de pé para pé, e as mãos afastavam o miúdo do tesouro fugidio. Até que ele mordeu os dedos a um que lhe pôs a mão na cara. A criança que estava em mim não o ajudou nem fugiu. Apenas ficou a assistir aquela forma de decadência humana. Mexi-me quando o outro teceu um esgar de dor nos dedos e pontapeou o meu amigo. Comecei a andar para eles enquanto o alimentavam de pontapés. O meu corpo já mexia mas a minha alma estava ainda inerte. Agarrei num deles por trás enquanto o meu espírito se enchia de adrenalina e começava a reagir, as premissas que me preenchiam a massa encefálica diziam-me que tinha de fazer algo. O quê? Eu não sabia ao certo. O rapaz acotovelou-me tantas vezes até eu o largar, magoado no peito e nas costelas. Eram mais velhos e mais corpulentos. Assim que se voltou para mim pontapeei a bola para a estrada já fora do ringue cinzento e cimentado. Um carro passava e empurrava a boa pela estrada abaixo. Furioso sacou de uma navalha e encostou-ma ao pescoço. Sempre fui frio não sei porquê às vezes não pareço humano e isso apoquenta-me. Por isso não compreendi porque é que não tive medo e não lhe disse nada enquanto sentia a lâmina fria no meu pescoço e ouvia o seu dono aos gritos a ameaçar-me. Judiaram mais um pouco connosco até que decidiram ir-se embora depois de me darem mais uns caldos. Ajudei os meus amigos a levantarem-se e fomos todos para casa para a janta quentinha que nos aguardava. Como se nada se tivesse passado, como se nada tivesse acontecido. Talvez aquilo fosse normal e a lei do mais forte tivesse mesmo que imperativamente reinar, embora os nossos olhos assistissem incrédulos aquelas tremendas injustiças. Só sei que voltei ao local do crime com um outro amigo que não sabia o que tinha acontecido. Desta vez apenas conversávamos sobre fazer cabanas nas árvores ou ir nadar no rio Tejo, estilo “Tom Sawyer”. Eles voltaram mas desta feita só em números de um casal. O meu amigo já devia ter tido problemas com eles porque os seus olhos esvaziaram-se por completo quando os viu. Ficaram negros e entristecidos. Foi-se embora a correr assim que os viu e deixou-me ali à espera. O dia era curto e já estava a escurecer. Sentei-me num banco de madeira apodrecida e comida pelas térmites, pintado com uma tinta espessa e escarlate. As folhas que esvoaçavam com o vento, varreram o chão à minha frente. Aproximaram-se de mim já a rir como covardes que eram e a chamarem-me nomes. Um deles apanhou um pau e apontou-mo como se de uma espada se tratasse. O outro assistia enquanto ria desenfreadamente. Eu fitei-os na cara e sorri. Deu-me com o pau na cara e rebentou-me os lábios. Cai no chão a ver a noite aproximar-se e as nuvens negras a anunciar chuva com a voz grave do vento a chamar para casa. Devo ter ficado só uns segundos inerte mas pareceram-me minutos. O frio gelava-me a alma até aos ossos e ergui-me sentado no chão a rir com a boca toda ensanguentada. O outro assustou-se e horrorizado fugiu. O do pau ficou e ajudou-me a levantar. Mal me pus de pé, presenteou-me com um soco no estômago. Fique sem respirar durante mais uns segundos mas mantive-me de pé. Saquei da grande faca que tinha presa entre a retaguarda das calças e a minha pele. A faca de cozinha que era amolada pelo homem da gaita de semana a semana. Mês após mês. A mesma faca que a minha progenitora usava para cortar cebolas, tomates e tudo resto com que presenteava o meu estômago na hora das minhas refeições. Fui em frente e enterrei-lhe a lâmina na zona umbilical. O primeiro impacto de pele e de carne foi como se estivesse a rasgar um pouco de cabedal. O que se passou a seguir parecia uma esponja embebida num liquido que espirrava para as minhas mãos. Larguei a faca e ele caiu já com os olhos a tremer. Tirei a faca e voltei a depositá-la no estômago. O barulho viciante era como se estivesse a penetrar uma mulher já muito húmida e relaxada de prazer. Tirei mais uma vez e agarrei com as duas mãos por cima da minha testa. Num movimento vertical enterrei-lhe a lâmina mais uma vez, desta feita no peito. Um som mais seco como se tivesse a bater em madeira abafada por borracha, seguido de um pequeno crack de afastar uma ou duas costelas. Repeti esse movimento muitas vezes até estar satisfeito. Até o meu corpo e a adrenalina se tornarem num só. Parei para ver a minha roupa ensopada em sangue e a pele das minhas mãos. O cheiro a sangue era intenso. Olhei para o céu nocturno e começou a chover-me na cara como se os céus contemplassem o meu sacrifício. Não verti uma lágrima por aquele ser imundo. O cheiro a sangue eram um pouco ferrugento e o ar enchia-se de cheiros de terra empapada em água de chuva e madeira de árvore outonal. Deixei lá a faca como se tratasse de Excalibur e abandonei o local em direcção ao jantar que me aguardava, quente e suculento.

Lord Death i fev. anno MMIX

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